Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


VELHARIA


Caso fossem essas diferenças bobas do tipo: eu gosto de azul e o Jairo adora o vermelho, tudo bem. Só que na nossa situação os contrastes são tremendos e nos colocam em cantos opostos no ringue da convivência no mundo. Trata-se de coisas do tamanho de: sou socialista e estou sempre pronta a lutar pelos direitos dos empobrecidos, enquanto ele é radical de direita, odeia homossexuais e considera os brancos superiores. O mais louco disso tudo é que eu o amo com toda a força de que é capaz o meu coração. É isto, mesmo que ele me faça, não, poucas vezes, sentir raiva e ficar de nariz torcido, rabo metido entre as pernas por causa dos absurdos que costuma dizer. Conhecem vergonha alheia? Pois é...

Há uns meses veio visitá-lo um amigo, chamado por ele de Major. Vocês não imaginam o tamanho das maluquices que conversaram. Foi chocante vê-los discutindo a respeito do formato da Terra. Sim, os doidos mais do que questionar, afirmavam que o planeta é plano! Pior foi quando o cara abriu os mapas e tirou do embrulho uma terra plana coberta por um domo de vidro. Fiquei toda aflita e como nem percebiam meu desconforto e eu não queria me meter naquelas doideiras, parti para a cozinha.

Estávamos diante de um novo interesse e claro que ele fez com que várias coisas mudassem em casa. Por exemplo, as séries que curto na televisão foram ficando para escanteio. Somente os documentários a respeito desse assunto é que passaram a ser mais que exibidos, repetidos infinitas vezes.

Enquanto os exércitos de tratores do Major e do Jairo iam aplainando a Terra, Dona Branca, permanecia envolta nos seus “glória a Deus”. Ela se converteu e passou, de um ano para cá, a dividir seu tempo entre os cultos na igreja e o apartamento. Meus pedidos a Deus eram para que o Senhor a fizesse obreira, pastora, sei lá. Que lhe desse um trabalho tal que nem mais viesse em casa, deixando o marido só para mim. Não gosto dela e sou correspondida. Está sempre me agredindo. O paraíso para ela aconteceria se eu não existisse. Odeia-me porque Jairo me ama. Simples assim.

A tragédia que fez com que tudo mudasse e eu perdesse a proteção do meu amado, aconteceu num domingo. Deu seis horas e nada de ele descer para fazermos o nosso passeio matinal. Caso me pedissem para apostar, diria que a demora acontecia porque a minha rival dera um jeito de prendê-lo. Cheguei a pensar que devia me vingar fazendo as necessidades no tapete novo da sala. Como os gemidos não surtiam efeito e eu já estava no auge da aflição por um “banheiro”, me preparei para os latidos desesperados. O alarido ia ser tão grande que o meu senhor não teria alternativa, a não ser vir correndo.

No mesmo momento em que abri a boca ouvi vozes lá em cima. Dona Branca chorava ao telefone. Subi as escadas e me postei onde podia ouvir o que acontecia. Orelhas em pé e soube que a questão era de saúde. Pedia socorro dizendo que o marido jazia na cama feito morto. Tomei um choque e por um momento, até esqueci a aflição. Desci e, na certeza de que não haveria passeio, me aliviei na área de serviço. A ambulância levou o meu amado.

O velho ausente e a bruxa se tornou mais bruta. Parecia querer descontar em mim a doença do marido. Jairo tinha sofrido um “Acidente Vascular Cerebral”. A primeira surra, se deu por conta daquilo que eu havia deixado entre a máquina de lavar e um balde.

Tinham se passado uns quatro meses e o meu amor estava voltando. Aquilo merecia fogos e champanhe. Minha felicidade sofreu um baque ao vê-lo: pele e osso, rosto flácido, boca torta e dedos parecendo garras. Jairo, além de não falar, perdera os movimentos. Somente o braço e pé esquerdos se mexiam. A cama nova era de ferro. Alta, estranha e cheia de manivelas. Foi com dificuldade que consegui escalá-la. Nossos olhos se encontraram e pude sentir o tamanho da alegria dele ao me abraçar, todo sem jeito, com aquele braço que ainda servia para alguma coisa. A gente chorou de felicidade.

Olhos fechados e não notei a chegada da rival. Dona Branca entrou aos berros e seu safanão me jogou longe. Senti dor, mas o que precisava era de correr, pois que iria me lançar o que estivesse à mão, machucando-me ainda mais. Relevei tudo, o que importava era que Jairo havia voltado. A lembrança deliciosa de sentir o braço do meu amor tentando, inutilmente, me segurar tornava molhados os meus olhos.
Acabaram-se os passeios. Tinha que cumprir as necessidades em uma folha de jornal e ai de mim se as minhas unhas grossas de bicho velho rasgassem o papel. Estava aos pés da cama quando a bruxa me acenou. Segurava nas mãos a coleira vermelha. Acreditei no milagre. A madrasta tinha se transformado em mãe carinhosa e me chamava para passear. Saímos, eu à frente abanando o rabo, quando o puxão me jogou aos seus pés. “Calma, sua cadela sem vergonha, não caminharemos até o parque. Dessa vez passearemos de carro.”

Confesso que perdi metade da minha animação, mas se tem algo que a gente não resiste jamais é a sair de casa, então entrei no carro cinza. Dona Branca ia silenciosa ao lado do motorista. Passamos por vários bairros e nada de chegarmos ao lugar do tal passeio. A cidade rareava, as casas iam ficando espaçadas. Pensei cá com as minhas pulgas que seria uma caminhada pelo campo. Nunca tinha ido tão longe e torcia para que a experiência diferente fosse interessante, mesmo tendo ao lado uma companhia tão desagradável.

Segurava o enjoo quando, enfim, paramos. O homem abriu a porta e arrancou a minha coleira, sinal convencionado para todo cachorro de “aproveita e corre”. Correr já não tenho mais idade para isto, mas saí para explorar a área. Cheirei um tronco, espantei um passarinho, reparei na borboleta azul em seu voo meio sem rumo. Então olhei para trás e cadê o carro que estava ali? Fui abandonada. Experimentei, da pior forma possível, a expressão que tinha ouvido uma vez do meu velho Jairo: “mais perdida do que cachorro caído de mudança”.

Eu, uma cadela idosa de um casal de velhos, aliás, não dos dois, mas do marido da velha, castrada, o que significa que acumulei gordura pelo corpo afora, largada num fim de mundo. Só que de uma coisa eu tinha certeza: jamais permaneceria ali parada. Administrei o pavor que sentia, cheirei o ar e me virei para a direção que tínhamos vindo. Então corri. Constatei logo à frente, língua faltando pouco para se arrastar na poeira, que há muito deixara de ser atleta. Afrouxei o passo na certeza de que acertaria o caminho. Sol forte e a sede me obrigaram a beber da água suja de um córrego e a barriga desandou. Escurecia quando aquelas casas distantes umas das outras apareceram. Sentia-me esgotada e resolvi descansar em um abrigo de ônibus. Tive um sonho lindo, meu Jairo estava curado e nem sinal de dona Branca.

Fui acordada pelo canto do primeiro galo. Aproveitei a trégua dada pela fome e me lancei na estrada. A cidade ia crescendo, chegou o asfalto e aumentava o movimento de automóveis e gente. Quase morri umas quatro ou cinco vezes até descobrir que motorista não respeita cachorro. Meu senso de direção, igual ou mais apurado do que o dos pombos correio, fazia toda diferença. Virei à direita em uma avenida e, três quadras adiante, à esquerda na rua em curva. Apertei o passo ao reparar que me aproximava dos meus domínios. Só mais dois quarteirões e bem à minha frente o parque se mostrava imponente. Eu estava salva. Dá para imaginarem o tamanho da minha alegria?

Um pouco mais de esforço, o estômago encostado às costas e eu latia e abanava o rabo diante do nosso prédio. Josias sorriu e pegou o interfone. Seu rosto foi se tornando sério. Balançou a cabeça e veio até mim. “É, Pretinha, não tenho notícias boas para a senhora. A patroa, não aguardava a sua chegada. Contou-me que tinha te doado para uma amiga e que ela lhe ligara para dizer que a senhora, não tendo se adaptado ao novo lar, tinha fugido.” Ainda por cima ela mentia descaradamente. Ânsias que tive de morder as pernas gordas da bruxa.

Queria morar por ali, viver na expectativa de ver meu Jairo de vez em quando, mas nem precisava ter alguma inteligência para perceber que aquilo era algo impossível. Jamais que os moradores consentiriam em um cachorro habitando por lá. Nessa hora conclui que eu tinha me tornado uma velha cadela em situação de rua. Abaixei a cabeça e desci do passeio. Nem sei se foi carro, ônibus, ou caminhão que me atropelou.

Bem, senhoras e senhores santos Anjos, agora que lhes contei a minha história, vocês já têm todos os dados para concluir minha ficha. Ainda há uma pergunta? Os meus três maiores desejos aqui na eternidade? Essa eu tiro de letra: aguardar a chegada do meu amor Jairo. O segundo é que fizessem aqui no céu uma réplica do Central Park, exatamente como via nos filmes, para que todo dia possa passear nele com o meu Jairo. O último talvez seja um pouco mais complexo: Dá para vocês mandarem Dona Branca lá para as profundezas do inferno?
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 14/04/2020


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