Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O ÔNIBUS, A ESTRADA E O MENINO
 
Cismaram com papai no morro. O pessoal do tráfico, desconfiado de que ele era X9 da polícia, nos expulsou. Nem vender a casa pudemos. Saímos com as roupas do corpo e carregando a televisão quase nova. Enquanto mamãe torcia para voltarmos ao interior, onde moravam os parentes, papai, pensava o contrário: retornar para ele significava reconhecer o fracasso.

Daí que, ninguém soube o porquê, surgiu nele a ideia de vivermos em Vitória. Convenceu mamãe de que uma cidade com nome tão bonito só podia nos trazer sorte. Para comprar as passagens, venderam a tv a preço de banana. Já dentro do ônibus, papai falou olhando nos meus olhos e das minhas irmãs menores, mesmo que não entendêssemos quase nada:

- Vitória, o nome garante, é cidade de vencedores e nós iremos vencer.

Não foi fácil o recomeço, nos juntamos aos sem teto e, numa noite, construímos nossos barracos de papelão ao lado da rodovia. Tínhamos casa, mas emprego que era bom, papai não achava. Ele soube que buscavam gente para trabalhar em granjas no interior. Disse-nos que iria e que nos visitaria um final de semana por mês. Mamãe chorava afirmando ser muito pouco, mas ele argumentou:

- Mais do que isto ficaria caro e o dinheiro, já tão pequeno, se tornaria ainda menor. Logo, arranjaria uma casinha para que nos reuníssemos novamente.

Cumpriu o prometido por três meses e sumiu. As panelas ficaram ainda mais vazias. Mamãe achou que ele podia ter adoecido. Tomou emprestado o dinheiro da ida e viajou. Procura daqui, busca acolá e descobriu que ele tinha arrumado outra mulher. Pediu desculpas, mas se disse apaixonado. Fez promessas de que nada nos faltaria e que, sempre que possível, viria nos encontrar. Nunca mais vimos papai.

Foi um tempo triste aquele. Perdi o gosto de brincar. Passava o dia sozinho e com os olhos presos na estrada. Vivia a expectativa de que, de uma hora para outra, ele surgisse na curva lá de baixo.

Apesar de morarmos a menos de dois metros do asfalto, estávamos proibidos de pisar nele. Mamãe aumentava os perigos de um atropelamento. Ela não sabia, mas a gente sempre arranjava um jeito de explorar o outro lado da pista.

Das brincadeiras, a que mais gostávamos era a de adivinhar as marcas dos carros que iriam passar. Havia apostas e as melhores premiações, muito mais do que bolas de gude e figurinhas, eram as revistas sobre automóveis, sempre cheias de fotos. O pai de Jorginho Preto era catador de papel e sabia o quanto elas nos eram valiosas. Sentíamos inveja dele, o primeiro a saborear as revistas. Cada um de nós se especializou em curtir um tipo de veículos. Pascoal adorava carros de passeio; Pitágoras, seu irmão maior, era apaixonado por caminhonetes; Jorginho Preto curtia as carretas, quanto maiores, mais fascinado ficava. O meu caso de amor eram os ônibus. Sabia de cor a hora em que cada um deles passava e adorava os engarrafamentos, quando a lentidão do trânsito deixava que os apreciasse em detalhes.

Nós os chamávamos de busões e, dentre esses, os mais queridos e aguardados eram os grandões, transportando passageiros em dois andares e com jogos duplos de pneus. Não me esqueço da primeira vez que um passou. Fiquei de boca aberta pela sua beleza e imponência. Senti dificuldade para dormir e sonhei que o dirigia. Aquela visão fez com que o sonho de ser um daqueles pilotos de camisa branca e gravata preta crescesse ainda mais. Gostava de acenar para eles – aos passageiros não, que isso era mico que só as meninas pagavam – e alguns retribuíam. Felicidade maior era quando, ao invés de balançar a mão, o motorista buzinava.

Mamãe chegou com a novidade: eu frequentaria a escola. Na manhã seguinte faríamos a matrícula e foi então que se descobriu o problema. No saco de documentos não foi encontrada a minha certidão de nascimento. Ela, que não se lembrava de tê-la visto algum dia, começou a desconfiar que papai não tinha me registrado. A certeza é de que havia lhe passado, num papel, o meu nome: Ozias, rei bíblico que, conforme o pastor, significava força de Deus.

Nasci em casa, mamãe me contou. Era tempo de muita precisão, papai só com uns bicos e ela, final de gravidez, sem fazer faxinas. Naquela noite acontecia uma operação policial e o pessoal guerreiro encheu os transformadores de tiros. Tudo apagado, pois assim os soldados não encontravam seus esconderijos. Eu nascendo, bala cantando e não se sabia de papai, só as vizinhas para acudir. Uma, que tinha sido auxiliar numa maternidade, foi quem me pôs no mundo. Era junho, um domingo de frio e chuvisco. A data exata ela não sabia e talvez por isto é que não se comemoravam os meus aniversários. Veio-lhe a lembrança de ser tempo da quermesse de santo Antônio. Como esse padroeiro é do dia 13, mamãe então definiu que nasci no dia 10 de junho.

O pior de tudo foi que não houve matrícula. O homem alegou dois motivos para não me aceitarem. A gente não tinha endereço, pois que dizer que se morava na rodovia era o mesmo que falar que se residia na rua, além de eu não possuir documento. Olhei o rosto de mamãe e vi que chorava. Não aguentei e, na lata, perguntei:

- Moço, como não possuímos endereço se temos casa? O senhor sabe que a gente vive, dorme e acorda nela todo dia?

Foi a minha voz sair e os dedos da velha me beliscarem a perna debaixo da mesa. O empregado fez cara feia e respondeu, como se eu não existisse, olhando duro no rosto de mamãe:

- Primeiro, dona, que aquilo não são casas, mas barracos. Outra coisa é que quem define endereço é a Prefeitura e nenhum morador dessa nova favela esteve lá para regularizar sua situação. Por último, mesmo que algum invasor tentasse isto, não iria conseguir nada. Quem não é dono, ou paga aluguel, não possui o direito de morar.

Apesar de gostar do fato de que não teria aulas, permanecendo livre como a estrada, o sangue ferveu, mas a lembrança do beliscão e a certeza de que um segundo viria, mais doloroso, me fez decidir pelo silêncio, mesmo sentindo a injustiça que faziam conosco.

Os loucos adoravam viajar pela nossa estrada. A maioria seguia e só depois de um bom tempo aparecia de novo. Uns poucos, nunca mais os víamos, parecia que tinham sido engolidos pelo asfalto. Inventávamos apelidos para os malucos, gritávamos e nos escondíamos, pois que xingavam e nos jogavam pedras. O que tinham em comum eram as tralhas: grandes sacos às costas e um tanto de roupas, vestidas umas sobre as outras, fizesse frio, ou calor.

A rodovia, como um rio comprido e de águas escuras, rápidas e perigosas, era toda a minha existência. Na vizinhança dela, todo dia era diferente. Jorginho Preto me acordou contando a novidade. Havia gente do lado de lá. Levantei-me depressa e fui ver aquilo. Protegidos pelo barranco, dava para se enxergar pouca coisa. A lateral de uma caminhonete branca, o que parecia ser uma grade colorida e partes de uma lona azul esticada e amarrada a uma árvore.

- Temos vizinhos, os ciganos montaram acampamento do outro lado da estrada.

Mamãe falou de um jeito parecendo preocupada. Pitágoras, que acabara de chegar, foi dizendo:

- Eu já vi ciganas, dona Marli. Elas usam vestidos grandes e coloridos. São ricas, têm as bocas cheias de dentes de ouro.

Aquela descrição me aguçou a curiosidade. Mamãe tinha que sair para o emprego, mas antes de partir lançou a sentença aterrorizante:

- Cuidado com esse povo, dizem que são ladrões de cavalos e de crianças.

Claro que aquilo me amedrontou, mas Pita tentava me tranquilizar.

- Mãe tem essa mania de colocar medo nos filhos.

- Então, você não tem receio deles?

Pitágoras riu e balançou negativamente a cabeça.

- Medo nenhum eu tenho. Uma vez, na cidade onde a gente morava, estava com minha tia no centro e uma cigana se ofereceu para ler o destino dela. Não sei o que falou, porque titia me mandou esperar em um banco da praça, mas reparei que ficou preocupada com as palavras da mulher sobre o seu futuro. Pior ainda foi que a adivinha levou o dinheiro da condução e tivemos que retornar a pé para casa.

- Elas são magas?

- Ah, se ler o destino é magia, então são sim.

- Acho, Pita, que se são capazes de lerem o futuro, serão boas também para outros sortilégios.

- O que sei é que não moram em casas, não têm endereços, cidade e muito menos país. Vivem soltos pelo mundo, num pra lá e pra cá de nunca parar, jamais criar raízes.

Nossa, aquilo que Pitágoras dizia era muito legal. Um povo totalmente livre. Uma “gente estrada” que, como a nossa vizinha e companheira, nunca parava. Aquilo fazia aumentar ainda mais o desejo de conhecer aquelas pessoas estranhas. Passei a imaginar mil aventuras do lado de lá da pista. Rituais de bruxarias, cantos enfeitiçadores, caldeirões cheios de poções mágicas...

Os meninos foram chegando e montamos um plano de exploração do acampamento dos ciganos. Todos concordávamos que aquele não era um dia adequado para a aventura. A história de que as ciganas usavam saias largas para esconderem as criancinhas roubadas, tinha se espalhado deixando as meninas apavoradas. Sumíssemos um tantinho de tempo e logo seríamos denunciados. Além do mais, que deviam estar com medo de que, mesmo sendo maiores, nós também pudéssemos ser raptados. Atentos a tudo que vinha do lado de lá, quando escutei vozes e um choro de criança, me voltou, um pouco, o receio. O dia acabou e fomos dormir escutando a música cantada em uma língua estranha.

O nascer do sol nos pegou acordados e foi grande a decepção ao percebermos que do lado de lá não vinha nenhum som. Muito menos se via o pedaço do caminhão branco. Lona esticada e grade não tinham mais. Os ciganos tinham ido embora. Mesmo assim fomos lá, mas além dos restos da fogueira e de uns lixos, nada de interessante a nossa expedição encontrou.
Pascoal era o meu melhor amigo e brincávamos o dia todo. Ele, mais velho uns três anos, também não estudava. Contou-me que não havia jeito de entender a mistura das letras e que por isto a sua mãe o havia retirado da escola.

Teve uma tarde em que vimos um boné no meio da rodovia e, pelas cores, se via que era do nosso time. Resolvemos apanhá-lo e, atentos, aguardávamos até que a estrada estivesse vazia para o resgate. Nada do trânsito diminuir e fomos ficando aflitos, porque o chapéu ia sendo amassado e logo estaria imprestável. Pascoal, no seu jeito simples, falou assim:

- Se a gente não for rápido, ele ficará tão sujo e pisado que nenhum banho vai deixar que se veja as cores de novo.

- Será que vale mesmo a pena? Puxa, é arriscado.

Eu contestei, mas ele disse que achava o trânsito até meio tranquilo e que no momento que falássemos, vigiando os dois lados, o “já” ele partiria rápido, o apanharia e continuaria correndo em frente. A gente lavaria o boné e dividiríamos seu uso. A tentação era grande demais e me convenci de que aquilo era o correto a ser feito. Confiei que teríamos sucesso na aventura, ainda mais que meu companheiro era dono de pernas grandes e ágeis. Dissemos vários “já” desencontrados. Enfim, estrada vazia, deu certo e lá se foi Pascoal. Do outro lado ele vibrou, boné na mão, como se tivesse feito gol.
Veio o medo de algum adulto vê-lo, o denunciando à mãe, a mais severa de todas. Eu disse “já” e Pascoal, cabecinha de vento, não falou o dele. Só partiu em disparada. O carro corria mais do que eu havia calculado. Escutei o baque e meu amigo voou se estatelando no piso. Fez um movimento com o corpo como fosse se levantar e ficou quieto de novo. Saí gritando. O povo foi chegando e interditaram a rodovia. Boné ao lado, olhos um pouquinho abertos e na boca ele tinha um pequeno sorriso.

Fiquei vários dias sem brincar e sem nem olhar para a pista. Achavam que Pascoal, garoto tão livre quando os ciganos e a rodovia, tinha feito tudo sozinho. Comigo, carrego até hoje a dúvida: será que foi o meu “já” naquele momento perigoso que matou o meu companheiro?

Mais um ano e passei a estudar. A ocupação crescia rápido e virou favela. Nossa vida melhorou e o tráfico foi chegando. Em mamãe foi nascendo a certeza de que ali não era lugar de se criar filhas. Vendemos a casinha e voltamos para perto dos parentes.

Na roça as estradas eram de terra e o asfalto passava longe. Sentia saudades dele, dos companheiros e dos busões. Fiquei triste, nem a escola e os novos amigos eram capazes de me alegrar. Por lá, naquele fim de mundo, só uma coisa me chamava a atenção. Todo dia, seis horas da manhã, um ônibus verde, velho e empoeirado, largava seus passageiros na praça. O motorista descansava um pouco, novos viajantes embarcavam e lá se ia ele deixando um rastro de poeira pelo caminho.

Como ninguém contratava faxineiras, mamãe arrumou outro trabalho. Preparava broas de milho, um café quentinho e saíamos, ainda escuro, para aguardar o ônibus. Ela vendia e eu cuidava do caixa. Alonso, o motorista, além de cliente se tornou amigo. Trazia-me notícias da estradinha que lá adiante ganhava asfalto e dos busões coloridos que trafegavam por ela.

O coração quase explodiu quando ele me convidou para auxiliá-lo no serviço de trocador. Mamãe relutou devido à minha pouca idade, mas o tamanho da alegria era tanta, somada à nossa necessidade de dinheiro, que não teve como negar. Na garagem recebi três jogos do uniforme. Vestir-me de camisa branca, calça azul e gravata preta me tornava importante. A lembrança de Jorginho Preto, Pitágoras e Pascoal me chegou forte. Meus amigos se sentiriam orgulhosos caso me encontrassem assim.

Agora, ao invés de ver a estrada passar, sou eu que passo por ela. Mais que um sonho trago em mim a certeza de que daqui a uns anos serei eu o piloto. Então, estarei no comando do ônibus mais bonito e, da cabine, acenarei e buzinarei para os meninos, encantados, das beiras das estradas.

Glossário:
Cigano: povo nômade.
Estatelar-se: cair, tombar, desmoronar-se.
Expedição: Exploração, caravana, empreitada
Imponência: grandiosidade.
Maternidade: hospital onde nascem os bebês.
Na lata: de imediato.
Padroeiro: Santo patrono do lugar.
Poção: bebida com propriedades mágicas e de cura.
Quermesse: feira em festa religiosa, barraquinhas.
Relutar: resistir.
Saborear: aproveitar o gosto, curtir.
Sem teto: pessoa sem moradia.
Sortilégio: bruxaria, magia.
X9: dedo duro, alcaguete.




 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 17/06/2019
Alterado em 17/06/2019


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