Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


NOS EUCALIPTOS DA SANTA RITA

Vou pedir à minha santinha
que me volte a felicidade.
De joelhos rezarei ladainhas,
porque dela sinto saudades.

(De uma cantiga antiga e triste da roça)


A doutora repare naquela pedra grande. Sim, a pontuda no meio dos eucaliptos. Pois ali, exato nela, a nossa mãe quarava roupa. Quarar, eu acho que nem existe mais e, então, a senhora nem sabe desta palavra? Ah, conhece sim, mas de papel escrito. Jamais a usou, ou escutou assim saída do interior de alguma boca.

Quero chegar mais perto, por favor, me ajude, coração segue apertado. Releve de ver uma velha, já no fusssss do restinho de ar da existência, vertendo lágrimas aqui na Santa Rita. Esta floresta toda de eucaliptos, até virar lá naquele morro, que de tão longe azulou, era parte da fazenda do Coronel Borropé Quintas da Luz. Vinha dos fundos, vizinhanças de Pirapora, seguindo adiante, até para lá do Andrequicé. Pedaços dela nadam escondidos nas funduras do lago de Três Marias. Tem noção de terras assim tão imensas? Coisas das antiguidades do meu sertão.

Desejo encontrar algum dos restinhos da casa e só tem folha seca de eucalipto fazendo esse cheirinho bom, mas que, a senhora sabe, só é do gosto de nariz humano. Será que a gente escuta algum tritritri de passarinhos? Bicho algum, nem formiga, animal tinhoso que aprecia qualquer ambiente, apruma casa debaixo desses pés assim parecidos a soldados em quartel. Tudo verde, alinhado e do mesmo tamanho. Mas num silêncio de tristeza que tem o tamanho do mundo.

A doutora me auxilia no achar algum restinho da nossa casa? Sim, qualquer pedacinho serve. Darei instrução a quem for cuidar de mim na hora fatal, para botá-lo juntinho do meu corpo, de jeito a se tornar uma terra só comigo. Não sou mais patroa dos meus joelhos. Estão duros e só vergam à custa de dor. Ah, a doutora se agacha e espanta as folhas secas na busca, pra lá e pra cá com a mão? Precisa ter medo não, já disse que aqui nem micróbio sobrevive. Piso seco que, de tão limpo, pode pertencer até a hospital, que neles tem faxineiras, toda hora, asseando. Corredores e quartos têm cheiro parecido com este.

Deixa eu ver melhor esse caco. Hum... é restinho de telha e só podia estar me esperando. Será ele o companheiro do caixão. Deixa eu encostar na pedra, a emoção aumentou o cansaço e o ar está mais preguiçoso de entrar inteiro nos peitos. Ah, nossa pedra querida foi a única a permanecer para me trazer a lembrança do passado. Tão grande e pesada, só dinamite muita é que haveria de ter competência de dar cabo dela. Então se mantém aí, estátua, Igualzinha ela vigia nos meus tempos de menina. Pois saiba, dona, que para nossos folguedos ela foi cavalo, foi castelo e até mesmo catedral.

Será que Deus considerará roubo se eu levar de recordação esse caco de telha? Daqui nunca fomos donos de nadica de nada. Tento imaginar em que parte do telhado ele ficava a me guarnecer das águas e sol forte do cerrado. Sabe que me dá gosto de pensar, que ele estava exatamente em cima do estrado no qual, antes de dormir, eu via os fios de luz da lua a fazer uns desenhos ao invadir o barraco?

Estudo mesmo, de escola, quase nunca que me deram. Aprendi aqui na Santa Rita um pouco das letras e dos números com mestre Dolezar. Esse era homem dos grandes. Haver tido ele como professor me dá uns orgulhos. Naquelas eras diziam que preto não tinha os direitos de ser orgulhoso, senhora também considera tal opinião? Meus orgulhos então eram calados, de olhar para ele com reverência e mirar as outras meninas como pobres coitadas. Era a única mocinha a tomar lição em meio aos filhos, bem menores, do patrão e dos capatazes. Professor Dolezar, nas suas vindas, apreciava pitar e prosear com papai em nossa casinha. A gente em volta e ele pôde reparar nas minhas inteligências. Disse que iria conversar com o patrão, pois que havia espaço na mesa e seria bom que eu tomasse parte nas aulas. Doutora é capaz de imaginar as alegrias quando eu soube que o Coronel concedeu aquele benefício? As permissões dele, descobri depois, não se moveram por conta da minha esperteza, mas pelo fato de que tinha os olhos estendidos para mim. Havia virado mocinha, crescera muito rápido e diziam que eu possuía altas bonitezas.

Pelos acontecimentos que se deram logo depois, senhora vai saber por que mestre Dolezar, mesmo com a minha argúcia, teve tempo quase nenhum de me ensinar. Depois que a sina do capiroto se cumpriu foi que aprendi muito. Doutora haverá de duvidar, mas já teve pessoa, das muito letradas, a afirmar que eu era dona de saberes iguais aos dela. Daquelas eras retrato algum eu possuo. Retratista vinha de vez em quando para as poses da família do patrão. Até que se oferecia, mas cobrava caro e os cobres eram suficientes só para o de comer. Nem para o de vestir sobravam. Roupa de inverno nunca tivemos. Batia o mês de junho e a gente pelejava. Mamãe mandava que o sofrimento da friagem fosse oferecido em sufrágio das almas do purgatório.

Misturo as ideias e atraso o que a senhora quer saber. Ter essa trabalheira de me tirar do asilo em Laranjeiras e viajar comigo esses setecentos quilômetros, estrada cansativa de dia todo, só por modo de assuntar essas velharias. Nem me disse do porquê desses seus desejos. Anseia escrever livro? Pois vou deixar de ser o córrego cheio de curvas que passava aqui, para ser reta no relatar. Pois o quê? Surpreendi dizendo que estamos em leito de riacho? Caso nada houvesse mudado, estaríamos dentro d´água. Pois não havia dito que mamãe lavava roupas aqui? Eucalipto, doutora, seca tudo.

Coronel Borropé, dando desculpa dos estudos, me levou para os serviços na casa sede. Larguei pais e irmãos na faina das plantações e cuidados com o gado. Para agradecer tanta bondade, papai acendeu vela na imagem da Santa. Mamãe, desconfiada e no seu jeito seco, me disse para tomar cuidado com alguma espécie de demônio que se engraçasse pelo meu corpo.

Lisandra, preta velha que jamais se esquecera de ser escrava, me segredou que eu caíra nas graças do Coronel e que se soubesse aproveitar a chance, ganharia vida melhor, podendo mesmo tirar minha família da miséria. Tive uns medos, mas saber que poderia ajudar meu povo, era algo que me dava umas esperanças de que a vida não precisava ser tão severa.

Um dia nos mandaram arrumar os trens para que dona Tetê e os filhos fossem passar uma temporada na cidade. Os carros de boi, depois de lavados, foram forrados com panos e travesseiros para que viajassem bem confortáveis. Lençóis brancos, amarrados pelas pontas, serviam de guarda sois. Estava escuro quando a comitiva de três carros, rangendo pela estrada afora, partiu. Tive umas invejas das empregadas que, só sorrisos, seguiam no derradeiro carro. Coronel e os homens pelos pastos e a gente no bem bom de fazer comida só para nós, proseando e dando gargalhadas das bobagens que as mais velhas nos contavam na cozinha.

Anoitecia quando o Coronel chegou ordenando que o banho lhe fosse preparado. Enquanto esquentávamos água, Lisandra saiu com Maria Neguinha para ajeitar bacia e toalhas. Ao voltar, a preta nos disse que o patrão dispensara a ceia, mas que desejava umas quitandas e dois copos de suco de tamarindo no quarto. Botamos numa bandeja bonita e cobrimos com um pano de linho bordado. A velha me chamou de banda e falou que tinha ordens para me arrumar. Deveria me banhar, pois seria a responsável por servir o patrão em seus aposentos. Nas minhas inocências, pouco que estranhei. Cabeça ainda de menina e estava mesmo era feliz por cumprir missão tão nobre.

Vestida na roupa de domingo peguei a bandeja. A preta velha falou que aquela era noite de festa e, maliciosas, riram alto. O Coronel vivia de cara amarrada e foi com um sorriso grande que me recebeu. Botei a comida sobre o criado e já ia saindo quando ordenou que me assentasse para comer com ele. Senhora me poupe de dizer o ocorrido a partir dali. Sinto vergonhas de haver adorado aqueles dias. Fui princesa, virei rainha, quando estávamos só nós dois ele me autorizou chamá-lo só pelo nome. Isto até que Dona Tetê retornou. Senti raiva. Eram ciúmes? A senhora acha? Coronel virou prazer escondido. Quando me queria, Lisandra me avisava para que o aguardasse no quartinho dos estábulos.

Mês passou sem sangrar. Mais uns tempos e sofria de enjoos. Ganhei ojerizas de algumas comidas e cheiros. Uma tarde, quando corri ao quintal para vomitar, escutei, em meio a risadas, alguém falar que mais um coronelzinho estava para chegar.

Então o mundo virou. A existência se tornou redemoinho fazendo desandar tudo. Escurecia, quando ouvimos gritos de socorro. Corremos e ainda pude ver papai no galope de fugir. Os capangas sem saber se iam atrás dele, ou se cuidavam do patrão. O Coronel, emborcado na cadeira de balanço, abraçava as tripas.

Lisandra me sussurrou para que botasse sebo nas canelas. Logo a patroa iria saber de tudo e só esperaria o enterro para exigir punição à traidora. Saí na correria e entrei no mato me machucando toda. Segui o regato para não me perder no meio da noite. Cheguei em casa e mamãe ganhava o mundo com as crianças: a família estava expulsa. Levando nossas pouquinhas coisas, despencamos nesse mundão de Deus. Se aqui em Santa Rita a vida era severina, a doutora pode imaginar o quanto mais dificultosa ela aconteceu fora. Os meus sentimentos naquela hora? Ah, como estavam embolados. Eu amava Borropé, estava viúva.

Depois de um dia direto de choro e de caminhar, chegamos nos arredores da cidade. A vida ia se fazer nova. Antes de prosseguirmos, mamãe deixou os meninos com a minha irmã e me levou para a margem de um rio grande. Escolheu um galho fino e o vergou, experimentando para ver se quebraria fácil. Em seguida o lavou na água corrente. Arrancou o sabugo do coité de pinga e mandou que eu bebesse tudo. Fiquei grogue e ela me deitou, abriu-me as pernas e aquilo foi enfiado em mim. Rasgava-me e a dor era demais. Dormi bêbada e no pesadelo, tão real, descobri que estava irremediavelmente só: sem homem, sem filho, sem pais e sem Lisandra. Como o destino podia fazer tanta maldade comigo?

Acordei com a cabeça no colo de mamãe, parecendo afetuosa, a me coçar. Recordei-me dos tempos de piolho. Gostava demais deles, pois ganhava os cuidados dela a me tirar, um a um, num jeito que me dava a impressão de ser carícia, os bichinhos dos cabelos. Mamãe, tão dura, de novo me fazia pequena, me acalentava. Tive umas febres e continuei com a hemorragia por mais uns dias. Conseguimos pouso numa tapera no sítio de um conhecido. A raiva que sentia de mamãe só aumentava e reparava que o ódio dela para comigo também crescia. Não nos dissemos nada. Sabíamos que não mais viveríamos juntas. Beijei meus irmãos e fui embora. Nem trinta dias tinham se passado e eu, que conhecia só a Santa Rita, agora era doméstica no Rio de Janeiro. Das bandas de cá, jamais quis ter notícias.

A doutora concorda que tudo referente àquelas eras está acabado? Tem assuntos demais para o livro. O que não consigo perceber, é se haverá alguém que vá se interessar por esses relatos tão cheios de desditas. Como é que é? Não tem livro nenhum a ser feito? Só desejava mesmo era saber a verdade sobre a história medonha que lhe segredaram sobre a sua família? Meu Deus, então a senhora é neta do Coronel Borropé Quintas da Luz?

Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 28/04/2018
Alterado em 13/06/2022


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