Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


OLHAR OBLÍQUO SOBRE A CIDADE

O monstruoso engarrafamento é o sinal mais evidente de que o final de semana está chegando. A imensa procissão - ou ela é mais parecida como uma interminável serpente? - lentamente a escapar pelas pontas dos raios que partem de São Paulo. No domingo aquilo que mais parece uma peregrinação religiosa, estará inexoravelmente de volta. Essas debandadas são para mim a constatação de que as pessoas daqui não valorizam a cidade tal qual deveriam.

Na sexta-feira a turma vai dando risadas enfiada nos carros abarrotados de tralhas e crianças. A lentidão do trânsito lhes é irrelevante, avaliam-na como mero detalhe do feriado, um mal periférico diante dos ganhos que terão lá longe. Já o retorno me apresenta rostos emburrados de quem mais parece estar se encaminhando à câmara de tortura. O arrastar do trânsito se transforma em grave empecilho à felicidade e então as tentativas para se safarem do marasmo surgem aos borbotões. É chegada a hora dos espertinhos, dos tais que se esmeram em levar vantagem. Não me esqueço do que ouvi de uma mulher estagnada logo ali adiante numa brutal sexta. Indignada com os sabidos se movimentando pelo acostamento com os pisca-alertas ligados, ela dizia ser aquela a prova cabal e luminosa do quanto os humanos são egoístas.

Mais do que óbvio que desejavam permanecer lá por onde estavam, que teriam amado esticar o tempo de lazer. A verdade é que a dura realidade impediu a concretização desse anseio. Há que se voltar para casa, eis que é aqui que cada um de nós arrancamos, uns mais facilmente, outros com bastante suor, alguns de forma lícita e outro tanto expressivo – seriam os tais da turma do acostamento? - com jeitos escusos, o sustento.

Ao reparar e refletir sobre isto tudo, vejo que posso me nomear como um filósofo da cidade grande. Quem sabe queira ser um pouco como aquela mulher que falava dos carros e seus pisca-alerta a fazer do acostamento pista de rolamento... Sou um desses residentes natos e digo orgulhoso que não abro mão de São Paulo por nada. Amo demais o meu torrão natal e mesmo que possa parecer piegas nunca me animei a partir. Provavelmente sinta ocultos receios de apreciar demais o que for encontrado em outras cidades, praias, cumes das montanhas, ou campos.

Um medo escondido de que o gosto por outras bandas me cause o esquecimento de ter saudades da megalópole, o imenso bloco de concreto dividido por linhas pretas de asfalto. Amo o cimento armado e o acho extremamente belo e instigante. Quando vejo um tapume imediatamente me chega a curiosidade e me ponho a imaginar a surpresa que os construtores me reservam quando da retirada das cercas. Pudesse ter estudado seria arquiteto, o poeta do concreto. Artista capaz de invejáveis miradas e isto porque possui um encantador olhar oblíquo sobre a realidade da megalópole.

Admiro a pauliceia através de duas perspectivas: os retratos mínimos e máximos. Os primeiros se dão quando me volto desde aqui em baixo, quase do rés do chão, para os detalhes das construções. É então que observo a impertinência do verde. Não é que ele teima, e isto sem haver sido convidado, a surgir? A imensa maioria dos citadinos só consegue perceber a minha segunda perspectiva, o tal retrato máximo e este consiste em observar a cidade através de um olhar macro. É quando escalo lugares mais altos para vê-la assim. Aí serão as árvores nas linhas pretas e principalmente nos parques, que mostrarão a impertinente cara de pau do verde.

Não desgosto da natureza. O que talvez ache – preciso refletir sobre este ponto – é que o verde me parece excessivo. Não sou radical, concordo que algumas vezes ele gera efeitos criadores de alguma beleza. Só que têm horas que se tornam feiosos tais quais manchas de sujeira esverdeada. Antigamente era melhor, dizem que se valorizava o concreto com mais ênfase. Lamentavelmente, parece que só se considera o verde na atualidade. O que vejo o povo falando por aí trata o cinza do cimento como se fosse frio e feio. Há paulistanos que veem o concreto armado como um mal necessário e isto só porque dependem dele para morar. Uns outros o citam com tamanho desprezo que fico com a impressão de que o consideram como pecado.

Estou sempre andando por aí a trilhar novos caminhos admirando formas e arquitetura da minha cidade e como tem coisa bonita. Não me canso de parar e levantar a cabeça embevecido curtindo - os passantes devem me achar louco ou bobo - alguma construção, ou mesmo um detalhe dela.

As interações com o cimento, feitas principalmente por moradores como eu, os mais simples, definitivamente que não me atraem. Sou de opinião que elas descaracterizam e banalizam a beleza da obra original. E o pior é que há algumas que me soam mesmo bem agressivas. Parece que o fato de não gostar de nada violento é porque o que menos gosto aqui na cidade é quando alguém demonstra sentir medo de mim. Logo eu, tão pacato, tão tranquilo, tão de paz.

Tomei um agradável susto poucos meses atrás ao me deparar com as pinturas de rua, essas que o povo chama de pichações e que vocês sabem que não gosto, sendo cobertas com tinta da cor do cimento. Gostei bastante do resultado dessa intervenção dos novos artistas, que pelo que observei estavam sendo incentivados pelo prefeito. Não é que os viadutos, pontes e outras edificações se tornaram mais vistosas pintadas desse jeito? Andando pela cidade reparo que há muita gente que não concorda comigo. Vi mesmo alguns bem indignados com o que foi feito com os antigos desenhos.

A sexta-feira vai se acabando e daqui a pouco será o sábado. A procissão está cheia de falhas. Os faróis, tais as velas acesas carregadas na celebração religiosa, não são mais constantes e enfileirados e, claro, seguem bem mais rápido como se ansiosos pela expectativa do encontro com os demais, na liturgia da escapada, alguns quilômetros adiante.

O relógio da barriga ronca a me lembrar ser mais do que hora de atravessar a rua para o jantar. A comida me aguarda lá diante da lanchonete. Explorar uns sacos que devem estar apetitosos. O cheiro de dentro deles já escapou e chegou aqui. Terei que ser rápido, logo o caminhão passará e meu alimento seguirá com ele. Somos diferentes dos paulistanos. O que mais eles detestam são as voltas dominicais à cidade. Conosco é diferente, o que nós, os cachorros, mais odiamos é dormir com a pança vazia.


Conto desenvolvido para o desafio do mês de abril dos Contorcionistas, tendo por tema o olhar oblíquo sobre a cidade
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 22/04/2017


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