Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

MODELO
Ainda tem gente que acha que esse dinheiro que recebo é grana fácil. Ficar aqui por quatro horas, sim, duzentos e quarenta minutos, com direito só a alguns intervalos de cinco minutos, nos quais posso me movimentar um pouco, como paisagem nesse sábado para que pintem meu corpo. Nessas horas, no meu silêncio e falta de movimentos quase absolutos, fico tentando dizer a eles: Olhem além, senhores, vocês não pintam uma natureza morta, mas sim uma pessoa viva, um ser humano que tem história.

E esse maldito relógio lá nos fundos que não se mexe. Parece estar preso em algum engarrafamento desses tantos que têm por aí. Ah, Senhor, será que pegarei trânsito ruim ao sair daqui? Abra as ruas para mim, Jesus. E eu, doida demais a olhá-lo, ensandecida, com pedidos de súplicas para que corra, para que gire tal qual o ventilador de teto sobre nós.

Os seios começam a incomodar. Daqui a pouco irão doer, o que levará aos píncaros a aflição. Amanda, tenho plena certeza, acordou. Essa ligação mãe e filha é incrível. Meus peitos a avisar que os lábios da minha filhinha, aqueles bolinho maravilhoso de gente de três meses apenas, estão ávidos pela vida que meu leite lhe propicia. Lembrar dela é sentir vontade de sorrir e nem posso. Que bom que tenho a Milene para cuidar dela.

E esse velho tão estranho da direita? Não me passa a impressão de que esteja diante de uma pessoa, mas sim em alguma praia no final de tarde.  Isso mesmo, no litoral com seu cavalete armado na areia a esperar o por do sol, no afã de conseguir aquele tom ideal de cor para compor a sua marina.

O Vítor, se pelo menos me ajudasse na criação de Amanda. Não, não quero que ele fique comigo, está decidido, não dá certo a nossa relação. Tudo não passou de um erro, um terrível engano, uma pintura que poderia ter ficado tão bela e que foi abandonada, abortada. Aborto cria vida? Esse, pelo menos, foi capaz de gerar um fruto tão divino, minha Amandinha. Só desejava que ele, pelo menos, me apoiasse. Afinal foi quem me animou, quem me deu a coragem para que nossa filha viesse ao mundo. Tudo bem, que depois tenha desistido de tudo. Nosso caso, tal qual havia se iniciado, terminou como a luz do crepúsculo vai se acabando e a gente fica sem saber quando terminou o dia, quando começou a noite.

E agora esse rapaz a olhar para o meu ventre como se ele fora algum morro bonito que almeja pintar, criar quem sabe a sua obra prima. Olha, cara, sou gente. Sim, pessoa humana. E estou viva, viu? Ouço os resmungos de Amanda. Os queixumes a aumentar e que de repente irão explodir em choro desesperado, como se não fosse possível viver longe do leite da sua mãe. E eu aqui tão distante diante desses babacas a me pintar. Aquele mais de trás me passa a impressão de que me enxerga como mero aparelho eletrônico. Todo plugado, a cada minuto ele para, para responder mensagens. Será que está falando do torrão de pedra e terra que pinta?

Ah, minha queridinha, chore bem alto para que eu te escute. Grite desesperada para que também a ouçam aqui no estúdio. Para que reparem que aqui tem gente, que gente chora, que gente detesta ser estátua, que estátua é fria e não tem humanidade alguma. Grite além da música que esse idiota do meio enfia orelha a dentro. Os peitos doem e assim livres, bem poderá ser que duas gotinhas brancas se formem em suas pontas. Nos bicos das aréolas, como me ensinou a enfermeira. A aflição aumenta e ainda faltam quarenta e dois minutos.

Dizem que sou expressiva demais, que é por isto que me pagam –e  ainda reclamam que me remuneram caro - para estar aqui com eles. Mas como sou expressiva se não me expresso? Expressiva é minha alma, expressivo demais é este meu coração tão cheio do amor de Amanda. Costumam contar por aí que são os bebês que dependem das mães. A mais deslavada mentira. Sou eu que dependo totalmente da minha criaturinha querida, amada, adorada.

Vou tentar não pensar, a coluna dói. Essa posição torta que me exigem é incômoda, será que não percebem? Sim, parto mais uma vez rumo às técnicas da yoga, os cuidados com a respiração profunda e lenta, viajo para os ensinamentos budistas querendo me esvaziar. Corro para os exercícios de meditação que me põem tão leve. Faltam só mais alguns minutos e neles vou intercalando cada uma dessas minhas técnicas de ser montanha, de ser aparelhinho bobo nas mãos de algum adolescente me vendo como mera realidade ampliada, como se só existisse dentro do seu smartphone, de me transmutar em bucólica paisagem marinha e até, meu Deus, em simples natureza morta.

Oi, captem meus olhos, seus bobões. Conseguem reparar como estão brilhando? Claro que são incapazes de perceber a vida pulsando dentro deles, tenho consciência dessa incapacidade de vocês e quero que saibam que não os perdoo por isto. Aliás, não os perdoo por nada, seus insensíveis malditos. Mas tentem, pelo menos nesses nossos últimos minutos, quem sabe por um instante apenas conseguirão? Mirem e vejam a vida linda que há neles. Percebem Amanda lá dentro? Entrem, não permaneçam aí na porta. Sim, este é um convite. Os portais pertencem às fachadas e elas são meras aparências. No meu caso aparências de peles e pelos.

Reforço o convite nessa última volta dos segundos.  Convido-os a deixarem aqui do lado de fora esse meu corpo nu. Sim, é isto mesmo, me invadam, me possuam. Entrem lá no mais profundo do meu olhar e visitem minha alma. Quero ver se conseguem fazer a pintura mais íntima. Aqui fora não tem a menor graça. Sim, senhores, eu os desafio a que pintem o meu coração.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 26/09/2016
Alterado em 04/11/2016


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