Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

MÃE DE MISS 

Pensando o quê? Sou mãe da miss Brasil. Minha princesa chegou lá. A cabeça em alguns momentos até duvida e o coração parece querer explodir de felicidade. Pena que a escolha da mais bela não pare mais o país como no passado, mas também os certames não eram como esses de agora. Sonhei demais ser miss, era criança e sabia-me bonita. O pequeno corredor da casa era a minha passarela secreta. Mamãe, mais preocupada com ela do que com qualquer outra coisa, fingia não perceber esses meus anseios. Jamais investiu em mim.

Mãe de miss era figura à parte, meio antológica. Espécie de leoa de chácara da filha, protegendo-a, cuidando das roupas, olhos atentos para que não a negligenciassem em detrimento de alguma concorrente. Mãe de miss era zeladora mesmo da integridade física da filha.

Neste saguão cheio de aeroporto fechado, ao contrário de todo mundo em volta, sinto-me leve, realizada. Apanho na bolsa a faixa cuidadosamente guardada e a visto em seus ombros. Hora de fazer dos limões dessa neblina gostosa limonada. Delicio-me com os olhares recebidos por minha princesa. A velha que vem ver mais de perto a faixa, o casal que pede para que tire com eles uma foto, as crianças a rodeá-la...

Também me sinto vencedora. Mãe de miss de certa forma é miss também. As nuvens das lembranças vão me embriagando, sorrio extasiada e os olhos lacrimejam. Vejo que reparam na felicidade que sinto, mas quem me vê assim não consegue perceber o que tive que ralar para que acontecesse esse dia.

A freira me faz lembrar Deus. Como pude me esquecer? “Senhor, sem sua ajuda jamais estaria aqui, tão distante de casa, saboreando a vitória, obrigada. Desculpas pelo esquecimento, mas Você sabe tudo e pôde ver a intensidade desses últimos tempos. Vencemos, mas ainda necessito pedir algo. É que fui demitida. As faltas para os ensaios, tantas horas em salões de beleza, viagens para cumprimento das etapas municipal e estadual fizeram com que aqueles exploradores insensíveis me mandassem embora. O Senhor me arruma um novo emprego? Nem precisa ser dos bons, mas que pelo menos não seja tão ruim quanto este último.” Rezo e faço discretamente o sinal da cruz.

“Soraya, vá ao bebedouro encher as garrafinhas de água. Calma, não saia assim esbaforida, como se morresse de sede. Você é miss e sabe muito bem como caminhar. Desfile até lá. Não nesse daqui de perto, vá naquele do outro lado. Sim, há outro no fundo do salão. Espere, tem mais um detalhe. Tome essa sacolinha e as ponha dentro. Não pega bem a miss Brasil ser observada a encher garrafas no bebedouro”.

Saguão de embarque lotado e minha princesa parece flutuar. Desfila maravilhosamente desviando-se nesse labirinto mágico de felicidade. O peito quer explodir de tanto orgulho. Vê-la assim é cair em conta do tamanho do seu amadurecimento nesses últimos dias. Em nenhum instante ela se comportou como uma menininha chata e birrenta. Nove anos e minha miss não é somente a mais bela. Transformou-se, como que por encanto, na mais linda moça.

Cartões de crédito bloqueados, dinheiro na bolsa somente para os dois ônibus, o primeiro para o centro e o segundo até o bairro onde moramos. Quero só ver a cara das vizinhas e das amiguinhas de Soraya quando a gente estiver chegando. Valeu a pena termos acordado mais cedo, mesmo estando cansadas demais das comemorações, para tomarmos o café sozinhas. Era a copeira desaparecer e irmos jogando num saco plástico umas comidinhas para a viagem, nos divertimos.

Mas que me importam essas bobagens? Bacana mesmo é que ela é a maior. E ainda tenho que conviver com gente invejosa a me olhar de cara amarrada falando coisas chatas como “adultização infantil” e de que estou em busca mais de realização pessoal do que na da minha miss. Obvio que me realizo também, mas isto nada mais é do que um pequeno ganho, marginal, do sucesso da princesa.

Só de pensar no futuro sinto arrepios. Gerenciar o crescimento estrondoso da sua fama. Administrar os convites para os desfiles, as entrevistas ao vivo, as sessões de fotografias, matérias dos jornais e o empréstimo, tão atrasado, feito para bancar o curso de teatro será pago pela primeira personagem a ser desempenhada pela minha miss atriz.

Aquela perua estranha, mãe da franguinha depenada, falava à mesa do jantar de algo interessante. Ouviu dizer do projeto, ainda sigiloso, de uma das redes de TV: um reality show com garotas e garotos de 9 a 12 anos. Não acho que tal formato passe. Olhos que veem maldade em tudo, e desses o mundo está cheio, iriam promover campanhas de boicote. Agora, um big brother só de garotas seria fantástico. Minha miss Brasil, tão inteligente, madura e alegre sem dúvida que seria a ganhadora.

Agora vem a preparação para representar o Brasil no certame mundial. Em breve Soraya sendo recebida no Galeão lotado como miss Universo. Ah, é tanto sonho, aguenta coração. Desde já é preciso planejar como arranjar dinheiro. Do pai, que nem quer que a filha se torne famosa, pão duro que mal e porcamente cumpre essa pensão ridícula, não conseguirei arrancar nada. Da família que me vê como louca varrida, quem sabe ao verem a faixa se animem a dar algum presente, talvez os vestidos. Fora isto mais nada e eu desempregada. A miss vem voltando, arrasadora, pelo saguão, sorrio e aceno para ela. 

Reparo meu corpo, talvez eu esteja um pouco gorda, mas ainda sou bastante atraente. Até costumam dizer que aparento bem menos do que trinta e quatro anos. Aquela agente de modelos e acompanhantes que ajudou a organizar um dos concursos das meninas, ao me elogiar disse haver um mercado interessante para mulheres de trinta. Onde foi mesmo que guardei o seu cartão?


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 04/07/2016
Alterado em 15/09/2016


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