Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

OUTRO CARNAVAL (ec)

Terça-feira, dizia no interior da mente a agenda. O asterisco ao lado do 12 indicava lá embaixo um dia especial. Terminava o carnaval e nem se dera conta de que a folia durava há três dias. Animado, levantou-se mais cedo que de costume do Módulo de Ficar Quieto. Buscou na pasta amarela da sua classe social, organizada com os 112 chips necessários ao Bem Viver, aquele correspondente ao evento. Guardou o Vida Diária-Algum Pensar e inseriu no recipiente conectado ao cérebro Carnaval-Blocos-Samba.

Imediatamente corpo e espírito se adequaram ao novo comando. Foi para a poltrona colorida, aquela em que há tanto tempo não se assentava e, olhos cerrados, caiu na farra. Que bloco era aquele? Estranho esse estandarte brilhante nesse dialeto quase esquecido. O nome evocava algo da história que conhecera em algum desses chips de instrução: Futebol, Alegria do Povo.

Havia dois grupos e uma bola entre eles. Ganhava um crédito aquele time que colocasse a bola em algo estranho, parecendo um cesto retangular e preso ao chão. Havia dois desses, um de cada lado e eram defendidos pelos únicos atletas que seguravam com as mãos o balão. Achou aquilo, como também o samba que cantavam, sem graça. Chocava-o também aquelas pessoas imitando feios, suados, pobres, gente amarela e mesmo preta. Rolou a tela e nada parecia interessante: Mosquitos, Zica e Dengue, com enredo baseado numa epidemia acontecida há um século, lhe pareceu bobo e desconectado da realidade.

Enfim algo interessante: BBB Vida Confinada. Aquilo era ótimo. Divertiu-se com as passistas dançando e lançando sorrisos, que seu sistema operacional indicava serem falsos. A ala tinha uma faixa adiante explicando tratarem-se de moças em busca de, pelo menos, quinze minutos de fama. Mais atrás rapazes fazendo exercícios na ânsia da aquisição de corpos fortes falavam coisas ininteligíveis. Monossilábicos, riam e gritavam para serem apreciados pelas mulheres de então, as que seguiam na ala adiante.

Aquele bloco era mesmo divertido. Conversas sem nenhum sentido. Diálogos vazios como as cabeças ocas da raça desenvolvida para ser trabalhadora com o córtex cerebral diminuido, impedindo-os de raciocinar e terem desejos. Seres sem nenhuma conexão para outros aplicativos e chips, que não fossem ligados a Força e Serviço e que funcionavam maravilhosamente. Mesmo sem o equipamento Pensamento Profundo, conseguiu perguntar-se: será que a raça dos humanoides fora criada a partir desses espécimes retratados no bloco?

Riu, cantou, arriscou uns passos daquela dança estranha. Divertiu-se à larga. Novidade, bateu papo, via ondas conexas interativas, com uma garota. Pediram uma bebida no menu Bar e a que lhes invadiu as células gustativas era horrível. Cerveja era o nome daquilo. Deram off àquele gosto. Melhor tomar Energipluzi18. Incrível a coincidência, essa era também a bebida etérea preferida dela. Vez em quando o comando mental enviava algo como um borrifo na língua. O assunto ficou para depois nos arquivos incríveis trocados. Cada um para o seu lado. Como pluzi18 contém certo teor alcoólico a vida foi se fazendo, como em todo carnaval, mais leve. Dormiu na poltrona colorida, esqueceu-se mesmo dos controladores on line. Por uns instantes chegou a pensar que fosse livre.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 15/02/2016
Alterado em 04/11/2016


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras