Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


A revolta dos Defuntos

Nos fundos do velho Cemitério a reunião corria animada. Alíás, este não é bom termo para nomear aquele encontro. Diz pouco do que por lá ocorria. É que o pau comia solto entre os Defuntos.

O aviso recebido era curto e grosso. Não poderiam sair pela cidade. Completavam dizendo que poderiam permanecer na praça em frente, chamada do Bonfim. Tal concessão, entendida por todos como ironia, enfurecia-os mais ainda.

Não todos. Tinham os que se conformaram. Eram poucos, não chegando a dez por cento deles. Esses, o grupo, mais cordato, optara por permanecer de lado, observando a contenda. Não demonstravam tomar partido. Acaso torcessem eram discretíssimos. Um provocou risadas ao dizer das gentes lá da cidade ainda a imaginar que morto só dormia.

A briga se dava pelas discordâncias a respeito da melhor forma de resistência, à proibição dos tradicionais passeios noturnos dos finados pela cidade. Uns diziam que ignorassem a ordem, agindo como se nada acontecera. Ou seja, sairiam individualmente, no máximo em duplas, como rezava a tradição dos Mortos, para aterrorizar crianças, mulheres e medrosos. O que queria dizer, na ótica deles, todo mundo.

Já o outro time pensava diferente. Deveriam mostrar-se, não como sempre acontecera, mas num bloco só. Levariam faixas exigindo liberdade de ir e vir para todos os Defuntos. Afinal, eles se consideravam cidadãos e exigiam respeito.

Após três horas de acalorada discussão, na qual não faltaram alguns empurrões e xingamentos aos nomes das mães, a maioria delas, que Deus as tenha, adormecidas ali naquele Campo Santo, o ambiente foi se acalmando.

Não somente porque desavenças cansam, mas também porque se demorassem mais a decidir, não encontrariam quase ninguém pelas ruas. Numa calmaria de madrugada em velório de velha solteirona, puseram em votação as duas propostas. A moção da passeata obteve setenta e um dos cento e vinte três votos possíveis.

A turma da caminhada coletiva tinha preparado, de antemão, lúgubres faixas, bandeiras e cartazes. Tudo estava pronto e foi assim que, cantando e dançando abraçados, esquecidos de que há pouco pelejavam, atravessaram o cemitério, cortaram os jardins da Praça e seguiram pela avenida.

Seguiram até à Prefeitura e agora, mais alegres, eis que a população se mostrava favorável a eles, o Bloco Carnavalesco Defuntos Defumados abria alas no carnaval enquanto, jocoso, reclamava da arbitrariedade das autoridades, proibindo-o e aos demais grupos de folguedo, de prosseguirem na folia após a meia noite da Terça-feira gorda.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 04/08/2013
Alterado em 22/03/2017


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras